Hipertimesia: lembrar de tudo em detalhes
A hipertimesia, mais conhecida como memória autobiográfica altamente superior (HSAM), é uma condição que permite que um pequeno número de pessoas se lembre de detalhes muito específicos de suas vidas. É uma habilidade diferente da memória eidética e da mnemônica, e grande parte dos mecanismos que medeiam seu desenvolvimento ainda são desconhecidos.
Não é um distúrbio, uma doença ou uma condição de saúde. Como existem pouquíssimas pessoas no mundo com ela, não se conhece sua frequência nem suas características mais detalhadas.
Apesar disso, estudos recentes lançaram uma nova luz sobre o que é a hipertimesia e por que aqueles que a desenvolvem têm essa capacidade de lembrar de eventos tão detalhados. Vamos ver o que dizem os cientistas e alguns exemplos.
Características da hipertimesia
A principal característica da hipertimesia é a capacidade de lembrar eventos da vida sem recorrer à técnica mnemônica, que se resume a uma série de técnicas e estratégias para lembrar dados, informações e fatos com base na memorização aberta e intensiva.
No entanto, como apontam os especialistas, aqueles com essa habilidade não ensaiam suas experiências passadas ou usam algum tipo de estratégia.
Outra característica da hipertimesia é que as pessoas se lembram de detalhes específicos, pequenos e triviais de suas vidas em uma ampla gama de períodos. Ao contrário daqueles com memória normal, que tendem a se lembrar apenas de eventos transcendentais ou importantes, as pessoas com memória autobiográfica altamente superior se lembram de eventos minúsculos ou aparentemente sem importância.
A habilidade é automática, incontrolável e contínua. Por exemplo, Parker et al. (2006) relataram o caso de uma mulher que conseguia detalhar com precisão infalível o que estava fazendo em um dia e hora específicos em qualquer data de seu passado.
Uma memória quase infalível
Como a habilidade é automática e incontrolável, as pessoas inevitavelmente passam boa parte do dia pensando em coisas que fizeram no passado, sem que isso implique um exercício ou treinamento da memória.
Essa qualidade da memória não está relacionada à síndrome de savant ou a qualquer outra síndrome ou distúrbio que potencialize as habilidades cognitivas. A capacidade é restrita apenas a detalhes pessoais e nenhuma outra informação.
Os dados adicionais de que essas pessoas se lembram (notícias, eventos etc.) estão relacionados a fatos pessoais (por exemplo, “Certo em que estávamos vendo televisão houve uma crise no mercado de ações”).
Quais são as causas da hipertimesia?
Estudos de primeira mão sobre hipertimesia são muito limitados. Isso ocorre porque existem muito poucas pessoas no mundo com essa capacidade, de modo que as avaliações correspondentes para determinar os motivos excepcionais da capacidade de lembrar não foram feitas.
Cabeza & St. Jacques (2007) e Schacter et al. (2007) sugerem através de estudos de neuroimagem que uma rede cerebral central aumentada é a causa.
Essa rede envolveria o hipocampo, o giro para-hipocampal, o córtex temporal lateral e a junção temporoparietal, o córtex pré-frontal medial e ventrolateral e os córtices pré- cúneo, retroesplênico e cingulado posterior. Outros pesquisadores também sugeriram a participação da amígdala nessa rede que permite organizar e resgatar eventos do passado.
As reivindicações acima têm seus detratores. Por exemplo, Ericsson (2003) não encontrou diferenças sistemáticas nos cérebros de pessoas com memória prodigiosa, sugerindo, assim, que a memória é mais uma habilidade que pode ser aprendida do que uma com a qual você nasce.
Da mesma forma, Maguire et al. (2003) segue a linha dessa hipótese, uma vez que seus estudos não constataram que a memória superior fosse impulsionada por capacidade intelectual excepcional ou diferenças estruturais cerebrais.
Não se sabe até agora se a memória autobiográfica altamente superior se deve a mudanças na estrutura cerebral ou se são certos hábitos no exercício da memória que produzem essas mudanças.
Reiteramos que o pequeno número de pessoas com essa habilidade impede a realização de estudos mais aprofundados a esse respeito. A resposta pode ser encontrada em variáveis multifatoriais (genéticas, ambientais, psicológicas e biológicas).
Falsas memórias e a memória autobiográfica altamente superior
A hipertimesia é frequentemente citada como a incapacidade de esquecer. Acredita-se que seja uma habilidade perfeita, na qual as pessoas com a habilidade são imunes a falsas memórias. No entanto, um estudo publicado no The Proceedings of the National Academy of Sciences em 2013 refutou essa crença.
O grupo de pesquisadores descobriu que pessoas com memória autobiográfica altamente superior também sofrem de distorção de memória, isto é, o que é conhecido como falsas memórias. As descobertas consolidam os argumentos de que ninguém está imune a esses episódios, que aumentam com o tempo e alteram parcial ou totalmente as memórias que uma pessoa guardou.
Ainda há muito o que investigar sobre essa habilidade, e com certeza os avanços na compreensão do que é a memória e a análise de pessoas com a habilidade ajudarão a desvendar seus mecanismos. A hipertimesia permanece até hoje uma habilidade muito rara, que apenas uma centena de pessoas em todo o mundo possuem.
- Ally BA, Hussey EP, Donahue MJ. A case of hyperthymesia: rethinking the role of the amygdala in autobiographical memory. 2013;19(2):166-181.
- Anders Ericsson K. Exceptional memorizers: made, not born. Trends Cogn Sci. 2003 Jun;7(6):233-235.
- Cabeza R, St Jacques P. Functional neuroimaging of autobiographical memory. Trends Cogn Sci. 2007 May;11(5):219-27.
- LePort AK, Stark SM, McGaugh JL, Stark CE. Highly Superior Autobiographical Memory: Quality and Quantity of Retention Over Time. Front Psychol. 2016;6:2017. Published 2016 Jan 21.
- Maguire EA, Valentine ER, Wilding JM, Kapur N. Routes to remembering: the brains behind superior memory. Nat Neurosci. 2003 Jan;6(1):90-5.
- Patihis L, Frenda SJ, LePort AK, et al. False memories in highly superior autobiographical memory individuals. Proc Natl Acad Sci U S A. 2013;110(52):20947-20952.
- Parker ES, Cahill L, McGaugh JL. A case of unusual autobiographical remembering. 2006 Feb;12(1):35-49. doi: 10.1080/13554790500473680. PMID: 16517514.
- Schacter DL, Addis DR, Buckner RL. Remembering the past to imagine the future: the prospective brain. Nat Rev Neurosci. 2007 Sep;8(9):657-61.